quarta-feira, 8 de abril de 2020

                                                               
                                                              O APAGÃO LITÚRGICO
Quando uns sinais se apagam, para que outros sinais despontem!

“A noite é bela, porque somente durante a noite, é que podemos enxergar as estrelas” Card. Suenens

Uma Semana Santa diferente. Uma oportunidade inédita de aprendizado. A graça do momento! Porque, para quem tem a felicidade de ter “olhos de ver” (cf Lc 10,23), “tudo é graça!”. 
De fato, o povo de cultura cristã, especialmente, a Igreja Católica, ao longo de séculos, vem desenvolvendo uma prática religiosa centrada nos Sinais Sacramentais, apostando tudo nas celebrações dos Sacramentos, sobretudo da Eucaristia. Nessas atividades celebrativas,  esgota-se a maior parte dos recursos e esforços humanos e pastorais, o tempo maior de ação e dedicação dos presbíteros. É o que a crítica teológica denomina de “sacramentalismo”.
Alertados e instados pelas autoridades sanitárias de todos os níveis e em todos os recantos do Planeta, as Igrejas, as autoridades eclesiásticas, com lamentáveis e temerárias exceções, quase que consensualmente, orientam seus fiéis a ficarem em casa, porque, no momento, a barreira mais eficaz à disseminação do vírus é o distanciamento ou isolamento social. Todos os grandiosos eventos religiosos da Semana Santa, estão sendo cancelados, ou reduzidos a celebrações com a presença de um número mínimo de pessoas, transmitidos pela mídia convencional ou pelas redes sociais. Do Vaticano à mais pequenina capela, nos rincões mais remotos, é assim que se vem procedendo, desde o Domingo de Ramos. É um verdadeiro “apagão litúrgico”.
Essa percepção me ocorre, justamente, quando me ponho a refletir sobre a mensagem desta Quinta-Feira Santa. É no mínimo curioso que o quarto Evangelho, escrito por João, ao narrar a Última Ceia, no clássico cap. 13, descreva, com detalhes a cena do Lava-Pés, e omita o que é destaque nos três Evangelhos sinóticos, repetindo o que escrevera Paulo no cap. 11 da sua primeira Carta à Comunidade de Corinto: a partilha do pão e do vinho, em sua memória. Ambas as leituras são proclamadas na celebração desta noite.
Segundo João, depois de ter lavado os pés dos discípulos, Jesus, conclui: “Pois bem, se eu lavei os pés de vocês, eu que sou o Senhor e o Mestre, vocês também devem lavar os pés uns dos outros. Eu lhes dei o exemplo, para que vocês façam do modo como eu fiz (...). Se vocês entenderem isso, serão felizes se o praticardes” (Jo 13,14-15.17).
De olho nas palavras de Jesus reportadas por João, vamos ler, como que, em paralelo, quanto relata Paulo: “De fato, eu mesmo recebi do Senhor aquilo lhes transmiti. A saber: Na noite em que foi entregue, o Senhor Jesus pegou o pão, e dando graças o partiu e disse: ‘Isto é meu corpo, que é para vocês. Façam isto em memória de mim’. Do mesmo modo, depois de cear, pegou também o cálice e disse: ‘Este cálice é a nova aliança no meu sangue,  façam isto em memória de mim’” (1Co 11,23-25).
O mesmo Jesus que, na Ceia narrada por João, lava os pés dos discípulos, aparece em Paulo e nos três primeiros Evangelhos, tomando o pão eo vinho, entregando-lhes, como alimento, seu corpo e seu sangue... O mesmo Jesus que em Paulo e nos sinóticos sentencia “façam isto em memória de mim”, é Aquele que, no Evangelho de João, ordena “vocês também devem lavar os pés uns dos outros”; e acrescenta como “bem-aventurança”: “Se vocês entenderem isso, serão felizes se o praticarem”.
Não é difícil imaginar que João, tendo escrito seu Evangelho depois de todos os demais, tenha querido alertar as Comunidades cristãs para o essencial, talvez já não tão claramente percebido, como se dissesse: “Queridos e queridas, não adianta comer o pão e beber o cálice da Ceia do Senhor, se vocês não lavam os pés uns dos outros... Se vocês não cuidam uns dos outros... Se vocês não fazem o que sugeri na parábola do Samaritano... Se vocês não estão dando a vida uns pelos outros como eu dei por vocês (cf Jo 15,12-14). Não adianta comer a Ceia em minha memória, se vocês não praticam o lava-pés no dia a dia.
Será, então, que a oportunidade, a graça que Deus nos está concedendo neste momento de “apagão litúrgico”, é justamente essa: “Aproveitem esse momento de não poder celebrar os Sacramentos, a Eucaristia, para perceber tudo quanto está acontecendo no meio de vocês (queira Deus!) e ao redor de vocês!?... Tanta gente se desdobrando para fazer sua parte, colocando-se a serviço de quem mais precisa, nesta hora de calamidade pública: arrecadação de cestas básicas, preparo e oferta de refeições ao povo da rua, confecção e distribuição de máscaras; Sindicatos de Trabalhadores/as, Movimentos Populares, Parlamentares, Governadores, Prefeitos e Juízes, e o próprio Ministro da Saúde, unidos na garantia de direitos da Classe Trabalhadora e de medidas abrangentes e eficazes de proteção para toda a população, especialmente os mais vulneráveis; e, sobretudo, Agentes de Saúde, dedicando-se no limite de suas forças, alguns, algumas literalmente dando suas vidas pela salvação do seu povo. Que beleza ver os agentes de saúde, médicos/as, enfermeiros/as e demais servidores/as homenageados/as em todo o Brasil e pelo mundo afora. Que emocionante vê-los reverenciados na China, como “Mártires do Povo”. Eis aí o Lava-Pés: o mandamento de Jesus sendo posto em prática! Eis aí a “presença real de Jesus” na vida, no dia a dia do povo! E somente essa “presença real” de Jesus na vida do povo, é que consubstancia e autêntica a “presença real” Jesus na celebração eucarística. 
Parece que o aprendizado da hora é este: Deus nos está convidando a fazer uma pausa altamente pedagógica. Aos que durante tanto tempo fomos tão assíduos na celebração da Santa Missa... aos que estivemos durante tanto tempo encantados, adorando a Jesus na hóstia consagrada... aos que até agora só o enxergamos nos “Sinais Sacramentais”, ele nos convida a abrir os olhos para os “Sinais dos Tempos”, todos esses gestos de solidariedade que se multiplicam e ampliam, perto de nós e pelo mundo todo, “pois tive fome e vocês me deram de comer, tive sede e me deram de beber, era estrangeiro e me acolheram, estava nu e me vestiram, estava doente e me visitaram, estava na cadeia e vieram me ver” (Mt 25,35-36).
Oxalá a Humanidade, países e mundo globalizado, indivíduos e sociedade, saiamos todos/as mais humanizados/as, capazes de construir um novo Sistema, que mantenha o  Planeta saudável e sustentável; as Economias, solidárias; as Políticas, clara e decididamente, a serviço do Bem Comum, do Bem Viver! 
E as Igrejas e Religiões santifiquem e honrem  o nome de Deus, Pai-e-Mãe de todos e todas nós,    colocando-se a serviço da “Vinda do Reino do seu Reino”, na medida em que se consagram à realização a sua santa vontade “assim na terra como no céu”, isto é, servir à  causa da Vida em plenitude! (cf Jo 10,10). Neste sentido, nós católicos, nesta Quinta-Feira Santa, poderíamos edificar-nos com as palavras de uma santa muito querida, que no final de sua breve existência, escrevia: “Sem dúvida, é uma grande graça receber os sacramentos; mas, quando o Bom Deus não o permite, está bem do mesmo jeito. Tudo é graça”.
Reginaldo Veloso, presbítero leigo das CEBs, 
assistente do Movimento de Trabalhadores Cristãos - MTC