quarta-feira, 5 de novembro de 2014

Quão “cordial” é o povo brasileiro?



Leonardo Boff
Adital
Dizer que o brasileiro é um "homem cordial” vem do escritor Ribeiro Couto, expressão generalizada por Sérgio Buarque de Holanda em seu conhecido livro: "Raizes do Brasil” de 1936 que lhe dedica o inteiro capítulo Vº. Mas esclarece, contrariando Cassiano Ricardo que entendia a "cordialidade”como bondade e a polidez, que "nossa forma ordinária de convívio social é no fundo, justamente o contrário da polidez”(da 21ª edição de 1989 p. 107). Sergio Buarque assume a cordialidade no sentido estritamente etimológico: vem de coração. O brasileiro se orienta muito mais pelo coração do que pela razão. Do coração podem provir o amor e o ódio. Bem diz o autor:”a inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, visto que uma e outra nascem do coração”(p.107).
Escrevo tudo isso para entender os sentimentos "cordiais” que irromperam na campanha presidencial de 2014. Houve por uma parte declarações de entusiasmo e de amor até ao fanatismo para os dois candidatos e por outra, de ódios profundos, expressões chulas por parte de ambas as partes do eleitorado. Verificou-se o que Buarque de Holanda escreveu: a falta de polidez no nosso convívio social.
Talvez em nenhuma campanha anterior se expressaram os gestos "cordiais” dos brasileiros no sentido de amor e ódio contidos nesta palavra. Quem seguiu as redes sociais, se deu conta dos níveis baixíssimos de polidez, de desrespeito mútuo e até falta de sentido democrático como convivência com as diferenças. Essa falta de respeito repercutiu também nos debates entre os candidatos, transmitidos pela TV. Por exemplo, que um dos candidatos chame a Presidenta do país de "leviana e mentirosa” se inscreve dentro desta lógica "cordial”, embora revele grande falta de respeito diante da dignidade do mais alto cargo da nação.
Para entender melhor esta nossa "cordialidade” cabe referir duas heranças que oneram nossacidadania: a colonização e a escravidão. A colonização produziu em nós o sentimento de submissão, tendo que assumir as formas políticas, a lingua, a religião e os hábitos do colonizador português. Em consequência criou-se a Casa Grande e a Senzala. Como bem o mostrou Gilberto Freyre não se trata de instituições sociais exteriores. Elas foram internalizadas na forma de um dualismo perverso: de um lado os senhor que tudo possui e manda e do outro o servo que pouco tem e obedece ou também a hierarquização social que se revela pela divisão entre ricos e pobres. Essa estrutura subsiste na cabeça das pessoas e se tornou um código de interpretação da realidade e aparece claramente nas formas como as pessoas se tratam nas redes sociais.
Outra tradição muito perversa foi a escravidão. Cabe recordar que houve uma época, entre 1817-1818, em que mais da metade do Brasil era composta de escravos (50,6%). Hoje cerca de 60% possui algo em seu sangue de escravos afro-descendentes. O catecismo que os padres ensinavam aos escravos era "paciência, resignação e obediência”; aos escravocratas se ensinava "moderação e benevolência” coisa que, de fato, pouco se praticava.
A escravidão foi internalizada na forma de discriminação e preconceito contra o negro que devia sempre servir. Pagar o salário é entendido por muitos ainda como uma caridade e não um dever, porque os escravos antes faziam tudo de graça e, imaginam que devem continuar assim. Pois desta forma se tratam, em muitos casos, os empregados e empregadas domésticas ou os peões de fazendas. Ouvi de um amigo da Bahia que escutou uma senhora, moradora de um condomínio de alta classe dizer:”os pobres já recebem a bolsa-família e além disso creem que têm direitos”. Eis a mentalidade da Casa Grande.
As consequências destas duas tradições estão no inconsciente coletivo brasileiro em termos, não tanto de conflito de classe (que também existe) mas antes de conflitos de status social. Diz-se que o negro é preguiçoso quando sabemos que foi ele quem construiu quase tudo que temos em nossas cidades. O nordestino é ignorante, porque vive no semi-árido sob pesados constrangimentos ambientais, quando é um povo altamente criativo, desperto e trabalhador. Do nordeste nos vêm grandes escritores, poetas, atores e atrizes. No Brasil de hoje é a região que mais cresce economicamente na ordem de 2-3%, portanto, acima da média nacional. Mas os preconceitos os castigam à inferioridade.
Todas essas contradições de nossa "cordialidade” apareceram nos twitters, facebooks e outras redes sociais. Somos seres contraditórios em demasia.
Acrescento ainda um argumento de ordem antropológico-filosófica para compreender a irrupção dos amores e ódios nesta campanha eleitoral. Trata-se da ambiguidade fontal da condição humana. Cada um possui a sua dimensão de luz e de sombra, de sim-bólica (que une) e de dia-bólica (que divide). Os modernos falam que somos simultaneamente dementes e sapientes (Morin), quer dizer, pessoas de racionalidade e bondade e ao mesmo tempo de irraconalidade e maldade. A tradição cristã fala que somos simultaneamente santos e pecadores. Na feliz expressão de Santo Agostinho: cada um é Adão, cada um é Cristo, vale dizer, cada um é cheio de limitações e vícios e ao mesmo tempo é portador de virtudes e de uma dimensão divina. Esta situação não é um defeito mas uma característica da condition humaine. Cada um deve saber equilibrar estas duas forças e na melhor das hipóteses, dar primazia às dimensões de luz sobre as de sombras, as de Cristo sobre as do velho Adão.
Nestes meses de campanha eleitoral se mostrou quem somos por dentro, "cordiais” mas no duplo sentido: cheios de raiva e de indignação e ao mesmo tempo de exaltação positiva e de militância séria e auto-controlada.
Não devemos nem rir nem chorar, mas procurar entender. Mas não é suficiente entender; urge buscar formas civilizadas da "cordialidade” na qual predomine a vontade de cooperação em vista do bem comum, se respeite o legítimo espaço de uma oposição inteligente e se acolham as diferentes opções políticas. O Brasil precisa se unir para que todos juntos enfrentemos os graves problemas internos e externos (guerras de grande devastação e a grave crise no sistema-Terra e no sistema-vida), num projeto por todos assumido para que se crie o que se chamou de o Brasil como a "Terra da boa Esperança ”(Ignacy Sachs).
http://leonardoboff.wordpress.com/2014/10/31/quao-cordial-e-o-povo-brasileiro/

Leonardo Boff

O lugar comum do preconceito em tempos de eleições

Nesta semana vamos viver uma ressaca eleitoral. Os comentários e análises já estão aí para comprovar. E como tem sido desde o momento que o PT chegou à presidência da república pela primeira vez, um dos traços dessa ressaca é o preconceito de alguns. Pela lógica de quem navega soberano e tranquilo no mar do preconceito, votar no PT é sinônimo de ignorância, falta de informação, falta de ética e ter tido o azar de nascer no norte ou nordeste, terras que têm no DNA a herança maldita da pobreza e da burrice.
( ... )
Os motivos alegados e que dão fundamento ao preconceito são:
Gente sem informação e educação vota no PT. Esquecem os armados de preconceito que educação não existe só na formalidade das escolas e universidades. Educação e informação têm outras fontes. Muito nordestino bom de cordel faz de sua arte o suporte para tecer críticas, defender ideias e informar. Confundem também os preconceituosos, letramento com senso crítico. O que deveria muitas vezes andar de mãos dadas vive em geral no divórcio. As faculdades estão cheias de alunos que querem ser técnicos e que não suportam qualquer disciplina que leve à reflexão.
Vota no PT quem não acompanha a política. Outro equívoco. O pleito eleitoral com tanta gente discutindo e se posicionando sobre os motivos do voto não é critério para medir a participação política do povo. Podemos considerar a euforia dos últimos dias como um fenômeno à parte do natural desinteresse pela política. O comum é o grosso da população ter ojeriza a tudo que se refere à política e manter distância de movimentos sociais. Não querer pensar a política no Brasil é quase um problema cultural atávico. Os analistas políticos dos últimos dias, divulgadores de vídeos, panfletos, montagens, não são mais que especialistas de ocasião, assentados sobre construções da realidade elaboradas pelos grandes meios de comunicação.
O movimento das ruas não se refletiu nas urnas. Nesta afirmação acredita-se que os que foram para as ruas estavam lá de forma preferencial para tirar o PT do poder. Esquecem os formuladores da tese que o descontentamento era geral, que se recusava qualquer bandeira partidária, que o povo das ruas estava recusando a estrutura como um todo, e as reivindicações abarcavam problemas tão diversos quanto contraditórios, que a consciência daquelas concentrações heterogêneas é difícil de ser aferida. Os que estavam nas ruas podem ter votado tanto em Aécio como em Dilma pelos mesmos motivos, ou não votado em nenhum candidato.
O bolsa família é a principal fonte de votos do PT. Projeto repudiado por quem votou em Aécio e chamado de bolsa miséria é tido como responsável pela reeleição de Dilma. A equação simplista é que o medo de perder o benefício puxou votos para a candidata. Se fosse verdade, São Paulo teria votado mais em Dilma. Depois da Bahia, São Paulo é o Estado que mais recebe benefícios do programa, seguido por Pernambuco, Ceará, Minas Gerais e Maranhão (Ver quadro).


Outro fator importante para a análise é a distância porcentual entre Dilma e Aécio nos estados onde o tucano foi vencedor. Com a exceção de São Paulo, os índices não são acachapantes, o que permitiu a candidata ser eleita.
O povo preguiçoso prefere viver de esmolas. Não, o povo não prefere viver na miséria e de esmolas. A maior parte das pessoas não está disposta a viver só para comer do que vem de um programa de governo. As pessoas têm aspirações maiores do que simplesmente sobreviver. Um pouco mais de generosidade na forma de ler a realidade faria notar que em muitos casos a situação da fome no Brasil era grave e sem remediações imediatas. A fome não espera soluções de longo prazo. Dar pão aos famintos é parte de medidas que visam corrigir inicialmente o irremediável. A outra parte da solução vem com cotas, investimento na educação (acesso ao ensino ampliado nos últimos anos, fato inconteste) redução do desemprego (4,9%, a menor taxa desde setembro de 2002, de acordo com o IBGE). A correção de um país voltado por séculos para as classes abastadas não vem de uma hora para outra. Leva tempo e pede atenção para quem antes não foi atendido em suas necessidades. Para o país ser de todos são necessárias medidas que dão prioridade aos mais frágeis. Não se pode olvidar que a fome já foi uma das maiores chagas da nação, e ela se concentrava sobremaneira no nordeste.
A vitória de Dilma não é fruto de motivos fantasiosos e que levam a explicações que depreciam o outro. O cálculo para se votar levam em consideração os anseios, a realidade, os riscos e um complexo maior de sentimentos. Achar que só uma parte da população é capaz de fazer isso e a outra não, é puro autoengano. Acreditar também que o desejo de mudança estivesse só de um lado e que o outro votou pela permanência é delírio. Os de baixo viram algo mais que a bolsa família. Viram oportunidades serem criadas, salários em ascensão, crédito acessível e educação franqueada. Quem votou em Dilma votou para mudar mais e encontrou razões para creditar isso a ela e não a seu opositor.

Magno Marciete do Nascimento Oliveira

Padre, mestre em Teologia pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia, doutorando pela mesma instituição e Professor na PUC- Minas